sexta-feira, 17 de outubro de 2014

sobre estar presx no corpo

Fui enunciado desde pequeno a um cargo pronominal. Quando x médicx bravejou "é um meninO." Desde então foram doutrinações em cima de doutrinações, repetições quase inocentes de um mundo já dado onde vim a existir. Caí num tempo-espaço onde fui ensinado, por ter sido fadado a um pênis, a ser meninO. À partir deste gesto sutil do destino biológico, de um pareamento específico de gametas, fui obrigado a vestir azul, a brincar de bonecos, a andar e brincar com outros meninos e, principalmente, a ser mais um controlador e reprodutor da divisão binária de sujeitos. Fui maliciosa, mesmo que ingenuamente por parte de meus parentes, a separar o mundo em dois tons. Posto em meio a outras crianças também reprodutoras, exclui meninAs e brincadeiras dito femininas para brincar com meninOs, para gostar de bonecOs e brincadeiras de ação. Me disseram várias vezes que 'era mais fácil ser menino que menina', forma sutil de dizer que ser menino era certo e ser menina era errado. Me ensinaram mais que amar ser menino, me ensinaram a odiar ser menina. Me ensinaram a repugnar os diminutivos, as flores, as bonecas, as casinhas, os brinquedos rosas, os desenhos 'de menina'. Inclusive, me adestraram a saber o que era 'de menino' e o que era 'de menina'. Brincos e cabelos longos e saias e sutiãs e calcinhas e vestidos e sapatos de salto e lacinhos, tiaras, presilhas, pulserinhas e brincos. Nada disso me foi acessível nem ao menos no campo imaginativo. Fui desenhado a gostar de futebol e luta e filmes de tiro, a coçar o saco e se masturbar e exibir virilidade (seja lá o que isso quer dizer). Me mostraram o mundo e o dividiram em dois. Me disseram o que eu podia e não podia fazer. Como eu devia agir e sentar, as palavras que eu deveria usar. Me doutrinaram a olhar para saias e calças (ou bundas, como alguns preferem acreditar) e me tentaram fazer acreditar que assédios eram elogios.
Nunca fui perguntado se eu gostava de ser chamado de meninO ou se preferia ser chamado de meninA, nem ao menos me permitiram passar pela cabeça essa opção. Nunca fui permitido cogitar o que sou, duvidar da minha existência específica dentro do mundo binário dos gêneros e jamais assumiram que eu poderia me sentir incompatível com tudo isso que simbolizava ser menino ou ser menina, nunca me disseram que havia uma saída,que eu podia não precisar ser nenhum dos dois.
Cresci então num mundo de duas entradas e nenhuma saída. Nunca quis ser meninO. Nunca entendi o que era ser homem. Também nunca experimentei ser meninA e hoje não sinto também que sou mulher. Por muito tempo tudo o que quis era não ter que ser. E é aí que eu comecei a me deparar com o que chamarei aqui de a dor da existência estética.
Não me recordo quando foi a primeira vez que me constrangi com o mundo masculino, mas lembro de várias demandas que vinham do meu grupo de amigos. Lembro das primeiras vezes que vi uma revista com fotos de mulheres nuas e de como meu interesse era de todo não sexual. Eu lembro de uma curiosidade sobre a escolha dos locais das fotos e de um incômodo com certas poses que eram clássicas dessas revistas. Lembro também de por várias vezes ser confrontado com o fantasma da masturbação masculina. Da sensação mecânica de reafirmação através do masturbar-se e do lugar que a masturbação ocupava na escala de afirmação. Havia poder na afirmação do ato pelos meus amigos, um certo orgulho de executar a masturbação apenas pela execução da mesma. O esperma como prova fluida de que 'sim, éra-se homem'. Nunca demonstrei interesse por nenhum dos temas. Das revistas eróticas retirei apenas algumas boas entrevistas e dicas curiosas sobre moda e etiqueta. Da masturbação, apenas constrangimentos em rodas de conversa nas quais eu ficava sem falar, apenas observando, concordando automaticamente ao fim de cada frase e rindo de forma falsa. Assim passei grande parte da juventude dentro dos circulos masculinos, deixando que a minha estética biológica por sí só afirmasse no campo uma existência que não era a minha. Vivi escondido no privilégio de que só por ser biologicamente identificado como homem, meu silêncio dentro dos círculos masculinos era visto como concordância com as práticas do mesmo e não como total estranhamento dos mesmos.
Quando o sexo começou a se tornar prática no meu círculo de amizade me deparei com o mesmo problema da masturbação só que de forma mais feroz. A introdução do falar sexual introduziu o que mais tarde fui perceber como uma das mais nítidas formas de machismo. A verticalização verbal do ato me soava repugnante e a prática em si, desinteressante. Me afastei pela primeira vez de forma brusca dos círculos de conversa masculinos e me deparei pela primeira vez com uma questão que me acompanha desde então: não sou homem.
Não sei se já havia pensado nessa questão de forma aberta antes disso ou se era só estranheza e desconforto até então, mas próximo ao fim dos meus quinze anos eu lembro nitidamente de saber que eu não era homem. Consciência essa que me gerou mais dúvidas do que alívios e me pôs em um paradoxo existêncial. Se eu não me sentia homem, mas também não me sentia mulher, o que era esse sujeito que se dizia 'eu' ?
No início minha resposta se resumia a sexo: eu não faço sexo, mas não era só isso. Eu não fazia sexo e não me sentia masculino, nem feminino e não sabia fugir desse binarismo, até então essencial para existência.
Com o tempo a fuga pelos privilégios que eu usava quando mais novo se tornou o fardo pelos privilégios e hoje é o que chamo de a prisão da exigência estética.
Em termos simples, ter pênis, barba, ser alto, negro e grande me prendem num esteticismo que me assume, à priori de qualquer experiência como homem. E o que era uma fuga possível em épocas onde minha única preocupação era esconder um desinteresse masturbatório nas mulheres (ou homens) nuas se tornou uma capa nebulosa que separa o eu do que as pessoas veem em mim. Uma capa estética, que divide o que eu sou do que é percebido da minha existência. Uma luta não para a afirmação de um corpo num espaço, mas para a desafirmação desse corpo, para o processo inverso. Procuro, ainda sem solução, a escapatória dessa casca privativa. O desejo aqui não é de produzir um corpo que possa falar em existência, mas uma existência que possa ser independente do corpo ao qual ela está presa. É a luta constante para ser identificado pelo que se é e não pelo que se habita. É todo dia ser reafirmado como homem por todxs xs pessoas com quem convivo e ter que lutar ainda sem as armas exatas para que minha existência perpasse o corpo ameaçador e desquailificante dela mesma. Existo num corpo que existe antes de mim e é isso que fere. Sou colocado todos os dias, a todo momento numa posição que não é a minha e que luto o tempo todo para desconstruir. Não sou homem, mas sou dentro de um corpo de homem. E a luta com esse corpo não é uma luta de identidade de gênero. Não sou uma mulher presa num corpo de homem, sou um não binário apreedido por um corpo que não me representa e que, para além disso, representa o que de pior há dentre os espaços corpóreos. Habito a própria opressão que sofro. Carrego comigo o peso de ter uma existência homem. De ser um corpo opressor, um corpo agressor, um corpo violentador. De causar medo legítimo nos espaços, de violentar com a minha presença aos outrose a mim e a mim quando aos outros. Tenho que tomar banho todos os dias (ou quase todos os dias dentro de uma honestidade) e confrontar tudo aquilo que não sou, mas habito. Lavar um pênis que não é meu, mas me foi concebido, cujo uso foi definido previamente a minha existência ou a minha experiência de pênis. Cuidar de toda a extensão de um corpo que me envelopa, que me exige, que me move. Ter completa consciência de tudo aquilo que meu corpo apresenta e ao mesmo tempo conviver com ele, sabendo que nada desse mesmo corpo me contempla. Toda a minha possibilidade foi e é traçada como a de um homem e todas as espectativas lançadas sobre mim, sejam elas boas ou ruins, são lançadas a um homem. Homem que não sou, homem que não fui, homem que não vou ser.
Todas as saídas encontradas para esse problema estético até então foram, claro, saídas estéticas. Utilizar de adornos, de máscaras, de sutilezas estéticas para suavizar a imagem monstruosa que meu corpo é. Mas não são cordões e brincos e saias e tiaras e pulseiras e rímel e batom e unhas pintadas e sombrancelhas feitas que vão me livrar do fardo de ter que demarcar sempre o espaço em que eu existo, acredito inclusive que esse tiro sairia pela culatra, onde ao invés de me fazer sentir melhor, me dariam outro tapa de realidade que não quero ver, tendo que esconder ainda mais o que sou atrás de máscaras estéticas. Tendo que disfarçar ainda mais a minha imagem para poder ser aceito como aquilo que de mais simples há na existência: não quero ser homem, seja ele de brinco ou sem brinco, de saia ou sem saia, nem quero ser mulher. Apenas busco, ainda de forma tortuosa e dolorosa por muitas vezes, um espaço onde apenas ser seja suficiente e onde não haja uma pré concepção do que sou à partir de um corpo que sou obrigado a habitar.
Quero existir Róquin, sem pronomes, sem esteticismos e sem ser taxado, seja por amigxs, seja por desconhecidxs, seja por eu mesmo, em momento algum, de algo que apenas faz parte em mim. Caso haja um grito de liberdade, o mesmo é "Deixa-me ser, apenas ser." sem que eu tenha que ser lembrado o tempo todo, onde meu ser está preso.

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