sexta-feira, 17 de outubro de 2014

sobre vestimentas e reconhecimentos automáticos

Hoje eu vou tratar de um assunto que vem me atravessando bastante desde muito tempo, mas ultimamente com uma perspectiva que ainda me é bastante nova e acredito que enquanto escrevo não só deixarei alguns pontos claros pra todxs que lerem mas também clarearei algumas das questões que ainda me parecem nebulosas quando tento transformar o que eu penso em alguma linguagem que possa ser transmitida de forma segura (porque transmissão de pensamento só acontece de vez em quando). Então aqui vai um pouco do que vem acontecendo nos últimos tempos e o que eu venho construindo à partir disso.
Vou tentar dividir o texto em 2 capítulos que abordam um tema princial e que será esmiuçado de forma voltada para uma questão mais específica no segundo capítulo.
. Construindo interna e externamente
Então é assim, agora finalmente me compreendi como não cis e pude declarar de forma clara e "rotulada" uma suposta identidade de gênero, no meu caso... Olares, sou Essx Tal Roquenrou. Sou não binárix. Isso significa que não sou homem. Mas também não significa que sou mulher. Não significa necessariamente que quero fazer qualquer tipo de processo de hormonização, de cirurgias, alterar meu tom e voz, minha postura, minha forma de andar, minhas vestimentas... Enfim, me identificar como não-homem não me faz ter que construir automaticamente uma nova identidade social, como se à a partir dessa identificação eu tivesse que assumir determinadas posturas, gírias e produções que são características de determinada tribo social. Também não significa que tenho que andar impecável e ser magrx e andrógenx e me vestir de determinada forma porque é assim que fica "fácil de reconhecer pessas que não parecem nem homem nem mulher e aí sim pode dizer que é não binário, você é homem."
Inclusive, vale a pena ressaltar : Não. Não sou um homem de saia. Toda vez que me veem como um homem de saia estão me ferindo, me desrespeitando. Estão colocando uma barreira invisível entre o que eu sou e o que meu corpo representa. Então suprimindo o meu eu em prol da existência de uma casca protetora que eu sinto carrasca que abriga, protege e escraviza a minha existência.
Isso quer dizer que não posso ser ele. Nem posso ser ela. Ele não é o Roque. Ela também não é. Então, quem é Roque ? É tão difícil responder para vocês quanto é para mim. Não vou corrigir esse texto e vou reler e ver quantas vezes eu esqueci e me referi a mim no masculino. A desconstrução é lenta e no fundo a gente vai engolindo um monte de coisa que não vai mudar. Não vou deixar de ser o filho amado de papai e não vou deixar de ser o júnior da mamãe, não vou deixar de ser Sr. pra pessoa que me atende na padaria, mas podia deixar de ser várias coisas, pra várias pessoas muito mais próximas, se houvesse um pouquinho mais de cuidado (mas o texto é grande e nem se se vão ler)... Mas a resposta é não. Não tem uma forma correta. A coisa toda é muito subjetiva então eu vou dar assim, uma "fórmula" que me ajuda muito a explicar quais pronomes eu prefiro. Neutro é meu preferido. (Um exemplo de neutro é escrever/dizer linde/lindi, maravilhose, etx...). Entre os dois pronomes binários eu prefiro o feminino ao masculino apenas pelo masculino ser meu pronome biológico, o que faz com que não seja criado nenhum questionamento em relação ao meu gênero o que me transforma automaticamente em homem por uma série de questões estético performativas características (e um certo preconceito em relação a transgeneridade ser necessariamente andrógena ou transexual) e, em consequencia disso acrescenta-se mais um estereótipo, o de homem gay. Acompanhem agora que o problema aqui não é um preconceito homofóbico de ser considerado gay, mas a confusão de gênero que é feita quando, ao beijar um homem, sou identificadx como homem gay e não como trans bi/pan sexual ou ainda mais próximo da realidade, asexual panromantica/poliromantica. Ser reconhecido como gay implica não só uma identidade de gênero masculina como uma orientação sexual dentro do espectro transante da sexualidade, retirando completamente a visibilidade do espectro asexual, demisexual e outros que habitam o universo LGBTTQIA+. Diminuindo assim a visibilidade da minha real identidade de gênero e ainda me tratando e se referindo a mim de uma forma que me fere enquanto sujeitx. Portanto, voltemos a apresentação:
Oi, meu nome é Roque, eu sou não binárix, asexual e panromantico.
: O pronome
Nascer um país cuja língua tem antecedentes latinos pode ser mera curiosidade para alguns, mas há os que percebem (ok, todos qe fazem cursinho de inglês) que nossa língua da gênero para todas as coisas o tempo todo. Coitadxs dxs mesas, cadeiras, borrachas, carros, elevadores e bonecxs por aí que estão com seus gêneros trocados. Mas a maioria de nós nunca se pergunta porque chamamos mesa de A Sr.a Mesa, ou, mais vulgarmente, a mesa. Acredito que de nós, existam aquelxs que acham isso engraçado, outrxs acham isso curioso ou "um saco", mas poucxs de nós realmente se incomodam, ou melhor, são atravessadxs por essas questões. A grande maioria lida com isso como mais uma curiosidade da vida, mas quando você é não binárix as coisas são um pouco mais complicadas que isso...
Imagine que você não seja do gênero que lhe foi biológicamente assignado (se você é trans não precisa imaginar ), agora imagine que isso não queira dizer que você necessariamente é do gênero oposto, como se apenas houvessem duas disposições pré-existenciais de gênero e que nós, existência posterior, fomos feitos a imagem de ambas, apenas com alguns defeitos de troca de corpo. Não ouse falar uma abobrinhagem dessas!
Aí caímos nas normas de gênero.
"Um garoto de 12 anos andava todo dia por uma ponte nos estados unidos rebolando mais do que a maioria dos garotos rebolava. Com 15 o rebolado dele se acentuou e outros meninos mais velhos do bairro se juntaram para impedir isso, jogaram ele da ponte e mataram o garoto. A pergunta que fica disso é: Por que alguém morreria pelo jeito que anda ?"
- Judith Butler
Não apenas o jeito que se anda, mas toda uma heteronormatividade imposta binariamente aos gêneros e dada como certa, completa e objetiva tenta normatizar, escondendo os desvios com preconceitos infundados, sejam eles religiosos ou não, e que à partir de uma quebra com essa norma existe algum tipo de senso (in)comum que permite que o valor da vida de uma pessoa possa ser reavaliade à partir da mera forma como a mesma anda, estamos vivendo em uma ditadura machista e binária, onde além de não poder-se respirar enquanto mulher não se pode existir enquanto trans.
Em resumo a não binariedade não me deu muitas coisas, mas me tirou bastante. Se fosse questão de escolha, tinha sido uma troca muito burra. Perdi minhas referencias de banheiro, de pronome, de gênero, de quais roupas comprar, como falar , como sentar, como se movimentar, o que dizer, o que não dizer, como rir, como espirrar, como abrir a boca, como comprimentar, como se despedir, como abraçar, como deitar, como dormir, como beber, como dançar, como trocar de roupa, como escolher roupa, como combinar roupa com brinco com colar, saber o que é uma saia double deck, o que é uma chiffon e onde comprar elas baratas... Entender de maquiagem (mesmo sem se maquiar, ainda não quebrei essa barreira, por medo mesmo.) e várias outras coisas que se tornaram possíveis, que já me interessavam ou que se tornaram obrigatórias porque era (e ainda é) necessário explicitar uma existência outra a minha pessoa. É necessário gerar pelo menos o mínimo questionamento e torcer para após esclarecimento não cair no estereótipo do 'homem e saia' ou do 'homem gay'. É porque é difícil pra caralho entrar numa loja e falar "muito obrigada" ou "muito obrigade", por mais que eu fique pute quando escuto "boa tarde, o sr. quer o que ?" e minha vontade é gritar "que senhor o caralho ce tá loka ? " E aí que entra a pira de como se feminilizar mais e não parecer um homem gay de brinca e saia e bla bla bla. Como ser identificade. Eu não sei. Não sei como fazer quando por exemplo vão me apresentar pra outra pessoa. Aí dizem. "Esse é o Roque' Usam 'esse' e 'o'. Duas palavras que determinam automaticamente que Roque é homem, e eu viro, mais uma vez um homem de saia.
Eu não sou um homem de saia. E eu to tendo muita dificuldade em me fazer explícite em relação a isso.
Desculpa o texto um pouco longo demais, bjo no coração de tdxs

sobre estar presx no corpo

Fui enunciado desde pequeno a um cargo pronominal. Quando x médicx bravejou "é um meninO." Desde então foram doutrinações em cima de doutrinações, repetições quase inocentes de um mundo já dado onde vim a existir. Caí num tempo-espaço onde fui ensinado, por ter sido fadado a um pênis, a ser meninO. À partir deste gesto sutil do destino biológico, de um pareamento específico de gametas, fui obrigado a vestir azul, a brincar de bonecos, a andar e brincar com outros meninos e, principalmente, a ser mais um controlador e reprodutor da divisão binária de sujeitos. Fui maliciosa, mesmo que ingenuamente por parte de meus parentes, a separar o mundo em dois tons. Posto em meio a outras crianças também reprodutoras, exclui meninAs e brincadeiras dito femininas para brincar com meninOs, para gostar de bonecOs e brincadeiras de ação. Me disseram várias vezes que 'era mais fácil ser menino que menina', forma sutil de dizer que ser menino era certo e ser menina era errado. Me ensinaram mais que amar ser menino, me ensinaram a odiar ser menina. Me ensinaram a repugnar os diminutivos, as flores, as bonecas, as casinhas, os brinquedos rosas, os desenhos 'de menina'. Inclusive, me adestraram a saber o que era 'de menino' e o que era 'de menina'. Brincos e cabelos longos e saias e sutiãs e calcinhas e vestidos e sapatos de salto e lacinhos, tiaras, presilhas, pulserinhas e brincos. Nada disso me foi acessível nem ao menos no campo imaginativo. Fui desenhado a gostar de futebol e luta e filmes de tiro, a coçar o saco e se masturbar e exibir virilidade (seja lá o que isso quer dizer). Me mostraram o mundo e o dividiram em dois. Me disseram o que eu podia e não podia fazer. Como eu devia agir e sentar, as palavras que eu deveria usar. Me doutrinaram a olhar para saias e calças (ou bundas, como alguns preferem acreditar) e me tentaram fazer acreditar que assédios eram elogios.
Nunca fui perguntado se eu gostava de ser chamado de meninO ou se preferia ser chamado de meninA, nem ao menos me permitiram passar pela cabeça essa opção. Nunca fui permitido cogitar o que sou, duvidar da minha existência específica dentro do mundo binário dos gêneros e jamais assumiram que eu poderia me sentir incompatível com tudo isso que simbolizava ser menino ou ser menina, nunca me disseram que havia uma saída,que eu podia não precisar ser nenhum dos dois.
Cresci então num mundo de duas entradas e nenhuma saída. Nunca quis ser meninO. Nunca entendi o que era ser homem. Também nunca experimentei ser meninA e hoje não sinto também que sou mulher. Por muito tempo tudo o que quis era não ter que ser. E é aí que eu comecei a me deparar com o que chamarei aqui de a dor da existência estética.
Não me recordo quando foi a primeira vez que me constrangi com o mundo masculino, mas lembro de várias demandas que vinham do meu grupo de amigos. Lembro das primeiras vezes que vi uma revista com fotos de mulheres nuas e de como meu interesse era de todo não sexual. Eu lembro de uma curiosidade sobre a escolha dos locais das fotos e de um incômodo com certas poses que eram clássicas dessas revistas. Lembro também de por várias vezes ser confrontado com o fantasma da masturbação masculina. Da sensação mecânica de reafirmação através do masturbar-se e do lugar que a masturbação ocupava na escala de afirmação. Havia poder na afirmação do ato pelos meus amigos, um certo orgulho de executar a masturbação apenas pela execução da mesma. O esperma como prova fluida de que 'sim, éra-se homem'. Nunca demonstrei interesse por nenhum dos temas. Das revistas eróticas retirei apenas algumas boas entrevistas e dicas curiosas sobre moda e etiqueta. Da masturbação, apenas constrangimentos em rodas de conversa nas quais eu ficava sem falar, apenas observando, concordando automaticamente ao fim de cada frase e rindo de forma falsa. Assim passei grande parte da juventude dentro dos circulos masculinos, deixando que a minha estética biológica por sí só afirmasse no campo uma existência que não era a minha. Vivi escondido no privilégio de que só por ser biologicamente identificado como homem, meu silêncio dentro dos círculos masculinos era visto como concordância com as práticas do mesmo e não como total estranhamento dos mesmos.
Quando o sexo começou a se tornar prática no meu círculo de amizade me deparei com o mesmo problema da masturbação só que de forma mais feroz. A introdução do falar sexual introduziu o que mais tarde fui perceber como uma das mais nítidas formas de machismo. A verticalização verbal do ato me soava repugnante e a prática em si, desinteressante. Me afastei pela primeira vez de forma brusca dos círculos de conversa masculinos e me deparei pela primeira vez com uma questão que me acompanha desde então: não sou homem.
Não sei se já havia pensado nessa questão de forma aberta antes disso ou se era só estranheza e desconforto até então, mas próximo ao fim dos meus quinze anos eu lembro nitidamente de saber que eu não era homem. Consciência essa que me gerou mais dúvidas do que alívios e me pôs em um paradoxo existêncial. Se eu não me sentia homem, mas também não me sentia mulher, o que era esse sujeito que se dizia 'eu' ?
No início minha resposta se resumia a sexo: eu não faço sexo, mas não era só isso. Eu não fazia sexo e não me sentia masculino, nem feminino e não sabia fugir desse binarismo, até então essencial para existência.
Com o tempo a fuga pelos privilégios que eu usava quando mais novo se tornou o fardo pelos privilégios e hoje é o que chamo de a prisão da exigência estética.
Em termos simples, ter pênis, barba, ser alto, negro e grande me prendem num esteticismo que me assume, à priori de qualquer experiência como homem. E o que era uma fuga possível em épocas onde minha única preocupação era esconder um desinteresse masturbatório nas mulheres (ou homens) nuas se tornou uma capa nebulosa que separa o eu do que as pessoas veem em mim. Uma capa estética, que divide o que eu sou do que é percebido da minha existência. Uma luta não para a afirmação de um corpo num espaço, mas para a desafirmação desse corpo, para o processo inverso. Procuro, ainda sem solução, a escapatória dessa casca privativa. O desejo aqui não é de produzir um corpo que possa falar em existência, mas uma existência que possa ser independente do corpo ao qual ela está presa. É a luta constante para ser identificado pelo que se é e não pelo que se habita. É todo dia ser reafirmado como homem por todxs xs pessoas com quem convivo e ter que lutar ainda sem as armas exatas para que minha existência perpasse o corpo ameaçador e desquailificante dela mesma. Existo num corpo que existe antes de mim e é isso que fere. Sou colocado todos os dias, a todo momento numa posição que não é a minha e que luto o tempo todo para desconstruir. Não sou homem, mas sou dentro de um corpo de homem. E a luta com esse corpo não é uma luta de identidade de gênero. Não sou uma mulher presa num corpo de homem, sou um não binário apreedido por um corpo que não me representa e que, para além disso, representa o que de pior há dentre os espaços corpóreos. Habito a própria opressão que sofro. Carrego comigo o peso de ter uma existência homem. De ser um corpo opressor, um corpo agressor, um corpo violentador. De causar medo legítimo nos espaços, de violentar com a minha presença aos outrose a mim e a mim quando aos outros. Tenho que tomar banho todos os dias (ou quase todos os dias dentro de uma honestidade) e confrontar tudo aquilo que não sou, mas habito. Lavar um pênis que não é meu, mas me foi concebido, cujo uso foi definido previamente a minha existência ou a minha experiência de pênis. Cuidar de toda a extensão de um corpo que me envelopa, que me exige, que me move. Ter completa consciência de tudo aquilo que meu corpo apresenta e ao mesmo tempo conviver com ele, sabendo que nada desse mesmo corpo me contempla. Toda a minha possibilidade foi e é traçada como a de um homem e todas as espectativas lançadas sobre mim, sejam elas boas ou ruins, são lançadas a um homem. Homem que não sou, homem que não fui, homem que não vou ser.
Todas as saídas encontradas para esse problema estético até então foram, claro, saídas estéticas. Utilizar de adornos, de máscaras, de sutilezas estéticas para suavizar a imagem monstruosa que meu corpo é. Mas não são cordões e brincos e saias e tiaras e pulseiras e rímel e batom e unhas pintadas e sombrancelhas feitas que vão me livrar do fardo de ter que demarcar sempre o espaço em que eu existo, acredito inclusive que esse tiro sairia pela culatra, onde ao invés de me fazer sentir melhor, me dariam outro tapa de realidade que não quero ver, tendo que esconder ainda mais o que sou atrás de máscaras estéticas. Tendo que disfarçar ainda mais a minha imagem para poder ser aceito como aquilo que de mais simples há na existência: não quero ser homem, seja ele de brinco ou sem brinco, de saia ou sem saia, nem quero ser mulher. Apenas busco, ainda de forma tortuosa e dolorosa por muitas vezes, um espaço onde apenas ser seja suficiente e onde não haja uma pré concepção do que sou à partir de um corpo que sou obrigado a habitar.
Quero existir Róquin, sem pronomes, sem esteticismos e sem ser taxado, seja por amigxs, seja por desconhecidxs, seja por eu mesmo, em momento algum, de algo que apenas faz parte em mim. Caso haja um grito de liberdade, o mesmo é "Deixa-me ser, apenas ser." sem que eu tenha que ser lembrado o tempo todo, onde meu ser está preso.